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José Marcelo de Oliveira, CEO do HAOC: “Medicina não se consome como outro bem”


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O setor da saúde mudou muito nos últimos anos. E continua mudando. Os avanços da tecnologia, as novas demandas do paciente e as próprias exigências do sistema para uma nova forma de entregar saúde fazem com que a gestão volte o olhar para essa nova realidade. Não se trata apenas de inovar, mas em como equilibrar todos os pilares contemplando novos processos, garantindo a qualidade, que o paciente esteja no centro e considerando que tudo isso seja sustentável. Esse foi um dos principais temas abordados por José Marcelo de Oliveira, CEO do Hospital Alemão Oswaldo Cruz (HAOC), no mais novo episódio do Futuro Talks.

P U B L I C I D A D E

Durante a entrevista, ele abordou questões como as mudanças da saúde nos últimos 30 anos, a importância do olhar para a qualidade — que envolve medir elementos como taxa de complicação, desfecho, garantir que a equipe esteja capacitada e que os equipamentos estejam sempre nas condições adequadas –, a gestão com o paciente no centro das decisões, os processos de inovação, etc.

O executivo também elencou algumas das pautas para ficar de olho em 2023 e se mostrou otimista com a nova liderança da gestão pública de saúde, que indica se basear em evidências para as tomadas de decisões.

 

Confira a entrevista completa a seguir:

Li um artigo que foi publicado pelo presidente de Harvard, em 1906, que falava sobre o futuro da medicina como profissão. Ele dizia o seguinte: “A profissão médica do futuro terá a satisfação não apenas de melhorar a condição ou prolongar a vida do indivíduo que sofre, mas também de exterminar ou limitar de perto as doenças evitáveis”. Mais de 100 anos se passaram desde que esse artigo foi escrito e continuamos ouvindo nos dias de hoje a mesma mensagem, no sentido de intensificar a prevenção, a atenção primária. Minha primeira pergunta é um pouco sobre esse contexto. Nessas três décadas que você tem de vivência no setor, é possível dizer qual foi a grande mudança em todo esse tempo da sua carreira? Ou você acha que pouco mudou?

José Marcelo de Oliveira – Mudou muito e continua mudando. A quantidade de vida, a qualidade de vida, as condições todas melhoraram. Por que aconteceu tanto avanço? O conhecimento caminhou, o método científico, existem muitas pessoas se dedicando o tempo todo de uma maneira muito determinada para buscar soluções e eu vejo avanço em todas as etapas da saúde. Então, o conhecimento sobre hábitos saudáveis e como isso evita a doença, diagnóstico precoce para pegar uma doença em uma etapa ainda curável… e mesmo quanto às condições que são diagnosticadas mais tardiamente, elas também têm mais opções de terapias. E algo que principalmente o meu ciclo da gestão das condições oncológicas me mostrou, foi que o lado humano influi muito. Trazer a pessoa para dentro dessa condição e na melhor maneira possível é parte do contexto. Isso traz melhoria também da percepção dele, porque ele se engaja, ele escolhe ou participa das escolhas. Para o indivíduo isso é muito importante, mesmo no campo da saúde, que é um campo que o conhecimento médio da população é mais baixo. Mas fico muito contente quando eu paro para refletir e observar o tanto que caminhamos.

Temos ouvido cada vez mais esse conceito do paciente no centro do cuidado. O que isso significa na prática?

José Marcelo de Oliveira – Existem várias camadas. Uma é no atendimento individual. O médico de hoje, diferente do médico mais antigo, que era aquele médico impositivo, é mais empático, ele traz o paciente para o centro. No nível individual, na prática é isso: você dedicar um tempo para o paciente poder conhecer na dimensão dele e no quanto ele quer saber. Não adianta você entregar o que você quer para todo mundo, porque cada paciente é de um jeito. No nível individual, você reconhecer o nível de interesse, o nível intelectual de cada paciente, o background cultural dele, tudo isso é importante e isso é fácil. Quando o médico tem a consciência, ele identifica e entrega melhor. Tem, por exemplo, aquele paciente que eu vi na minha carreira médica que falava “doutor, eu estou na sua mão e na mão de Deus”. O que ele está me dizendo? Ele está pouco interessado no conteúdo específico da doença dele. Mas também tem aquele paciente que você pergunta o motivo de ele estar lá e ele fala “Olha, eu já fiz uma cirurgia, eu já estou numa segunda etapa de quimioterapia” etc. Se eu entregar para esse segundo a mesma coisa do primeiro, ele vai sair com a percepção que foi abaixo do que ele precisava. Ele acreditar que está melhorando é um elemento fundamental. E se você inverter, é a mesma coisa. Aquela pessoa, geralmente mais idosa, mais religiosa, que te fala que está nas mãos de Deus, está encerrando o assunto e você não deve levantar assuntos que ele não está preparado para receber. Isso é no nível individual, essa relação médico-paciente, que é o elemento central da saúde.

Mas e no nível de um hospital, em um sentido mais global?

José Marcelo de Oliveira – No nível sistêmico, há todas as camadas que a gestão traz, desde o desenho da experiência, da arquitetura, do espaço, lembrando que existem etapas anteriores ao encontro do médico com o paciente e as etapas posteriores. É preciso que você inverta a lente e também considere o que é importante para o paciente e não só para a gestão, porque você fala assim “olha, se eu colocar um desenho desta maneira vai ficar mais barato para construir aquele espaço”. Só que para o paciente talvez não seja tão boa, a privacidade plena é importante, ter salas de espera um pouco mais individualizadas é bom, tudo isso é valor. Então, quando você olha sistemicamente, você traz essa perspectiva, e aí qualquer camada sempre tem essa perspectiva. Avaliar a satisfação, rodar aqueles ciclos de melhoria contínua… e aí existem mil ferramentas, mas é sempre falando “olha, e o paciente nessa história?”. Muitas vezes, por uma empolgação ou imaturidade, nós queremos resolver tudo, mas basta perguntar e o paciente te entrega a solução. Então, para a visão sistêmica é isso, nos planejamentos e execuções trazer a perspectiva do paciente e depois que está rodando é preciso continuar medindo, observando, perguntando, porque sempre dá para melhorar. Essa é a essência do balanço entre custo-benefício.

Pensando do lado do paciente, que recebe cada vez mais ofertas diversas de serviços de saúde, por exemplo. Como a qualidade entra nesse contexto?

José Marcelo de Oliveira – A qualidade é um elemento que na saúde e na medicina vira um significado meio difuso. Qual é a qualidade tangível? O que estamos falando de qualidade? Muitas vezes alguém não quer aceitar uma mudança, porque vai perder a qualidade. Sempre se pensa “o que eu estou perdendo” e de fato, quando você começa a ver que não está perdendo, é mais uma resistência cultural à evolução. Então, medir objetivamente a qualidade é importante. E aí existem métodos para isso: medir desfecho, medir taxa de complicação, garantir que a equipe está formalmente capacitada, que os equipamentos estão em condições com revisões e manutenções corretas. A gestão de qualidade precisa ser objetiva, não pode nem ser autodeclarada e nem ser uma cortina de fumaça. O que eu vejo é que o público geral ainda não sabe reconhecer objetivamente a qualidade.

Ele não tem ideia como se percebe a qualidade, de modo geral?

José Marcelo de Oliveira – Ele não sabe. E aí algumas dicas são: “quais as certificações que aquele serviço tem? É uma certificação conhecida? Válida?”. Esses são pontos importantes, mas eu vejo no futuro o paciente perguntar para o médico qual que é a taxa de sucesso dele naquela condição e isso ser um ponto de partida do critério de decisão dele. Existe a empatia, o contato, mas é importante saber se o médico tem experiência na sua condição e isso ajudar na decisão.

Isso é uma questão de estruturar essa comunicação para que ele saiba que, eventualmente, ele pode perguntar isso? Para o paciente, talvez isso ainda não tenha ficado tão claro, do ponto de vista que ele pode questionar o médico sobre taxa de desfecho, por exemplo.

José Marcelo de Oliveira – Sim. E o médico do futuro que tem essa informação vai se sentindo capaz de fazer a troca com o paciente e de reforçar os vínculos de confiança, que é o elemento fundamental para seguir. Na medicina eu não posso garantir o desfecho, porque tem as variações individuais. Desfecho é o resultado imediato e depois o resultado a médio e longo prazo. Para o paciente, como ele não consegue avaliar muito bem, se ele conseguiu construir uma relação de confiança, e isso está na literatura médica, ele vai entender que, no caso dele, não deu certo, que era possível e isso não quer dizer que foi uma má prática. Para ele, era só uma taxa que, na exceção, aconteceu com ele. Ele pensa que é lamentável, obviamente, no nível individual, mas faz parte das possibilidades. Trazermos a conversa nesse nível é muito bom. Mas de novo, você tem que olhar no olho do paciente e entender se ele está pronto para essa conversa. E o contrário também acontece. Quando o indivíduo está pronto e o médico não está. A impressão do médico é que o paciente não confia nele e os médicos mais tradicionais reagem assim. Mas para os médicos mais jovens, isso é normal.

Tem um levantamento da Ipsos que aponta que para os pacientes, alguns tópicos são extremamente relevantes quando se fala em experiência: que o médico ouça, que a comunicação seja clara, que tenha um plano de cuidado transparente, que explique os caminhos e que leve a dor a sério. Apesar de parecer básico, o que é preciso fazer para que isso seja de fato garantido para o paciente?

José Marcelo de Oliveira – Para nós, como gestão, para conseguir superar essas etapas, você tem que identificar quais são os pontos críticos do paciente, porque é nessa hora que ele sente falta ou ele reconhece a presença. Então, como gestão é você entender “bom, nesse ciclo de serviço que eu tenho na minha frente, o momento de estresse dele é tal, e nesse momento eu vou tratar diferente”. Vamos pegar um processo relativamente simples, como a mamografia. Toda mulher vai passar por isso ou já passou. Qual é o momento crítico? Quando aperta a mama, é desconfortável, mas o momento crítico é, se depois das quatro incidências, o técnico volta na sala e fala “olha, só vou fazer mais uma”. A mulher desmonta, porque ela acha que tem alguma coisa errada ali. Se você falar “olha, tem uma imagem que eu acho que não é nada, mas para documentar definitivamente, nós vamos repetir mais uma”. É uma outra forma de entregar a mesma experiência.

Assim você evita que ela fique com frio na barriga até o dia do resultado.

José Marcelo de Oliveira – Exato. Agora, pega esse mesmo ciclo. Nós perdemos essa chance, porque na hora do laudo, nós dispensamos o paciente e não pedimos essa complementação. Aí eu vou ter que ligar para ela, mas se eu me preparar para essa ligação, ela não vai sofrer tanto. Isso é um exemplo muito simples. Agora, coloca isso no ciclo de um paciente no hospital. Primeiro, ele tem um método diagnóstico. Nós temos que ser muito cuidadosos. A próxima pergunta é “tem tratamento?” e “eu vou conseguir pagar?”. E hoje tem intermediação das operadoras, que é bom para o sistema, mas muitas vezes há pré-requisitos, tem os delays, o tempo de resposta, e tudo isso gera estresse. Então, o que a gente busca na gestão é tentar simplificar tudo isso. Esse é um exemplo de olhar que coloca o paciente no centro. Ele nem sabe que está acontecendo em favor dele, mas é a busca incessante. Eu preciso reconhecer os pontos críticos e colocar uma energia neles. Quando a Ipsos faz essa pesquisa e quando vemos outras, isso ajuda muito, porque entendo onde não vou perder tempo e onde vou colocar esforço.

E todos precisam estar com a mesma mentalidade, certo?

José Marcelo de Oliveira – Todo mundo precisa estar na cultura, nos programas de capacitação, no sistema de informação etc. Na hora que chega um novo colaborador na recepção, ele tem que entender que é um paciente que está num momento frágil e muitas vezes não está no crachá dele. Nós olhamos para as pessoas e elas estão bem, mas emocionalmente não. E é nessa hora que os problemas surgem, porque é uma diferença de expectativa de um lado e do outro. Isso acontece em qualquer serviço. Eu aprendo muito quando eu estou fora da saúde, vendo as outras coisas acontecendo.

Me conta um exemplo.

José Marcelo de Oliveira – Eu fiz um treinamento de serviços no modelo da Disney aqui no Brasil. No treinamento eles falam “olha, nós sabemos que as famílias esquecem onde pararam o carro depois de ficar um dia inteiro no parque”. Eles têm um método para fazer as pessoas lembrarem. Quando você chega para parar o carro, você não para em qualquer lugar. Os carros param sequencialmente e na hora que fecha a fila, o funcionário anota o horário que aquela fila fechou. Essa é a primeira dica que ele tem para resgatar esse carro. Depois as pessoas têm que falar três vezes a cor daquele estacionamento e o personagem. Por exemplo, “você parou no Pateta, o Pateta é a cor azul”. Aí você entra no trenzinho para ir ao parque e eles repetem “esse é o trenzinho do Pateta, esse é o trenzinho azul”. Depois de um dia com duas crianças, você está cansado. Eu estava saindo do parque, tinha uma pessoa com um iPad que perguntou se eu precisava de ajuda e ele começou a usar o método. “Que horas que você chegou no parque?”. Eu falei “eu acho que foi mais ou menos umas 10 horas”. Ele viu e falou “é o estacionamento do Pateta”, aí eu lembrei. Mas depois veio a surpresa principal. Ele falou “no parque, você se sentiu discriminado ou viu maus tratos para alguém?”. Aí caiu o queixo. Olha o nível de preocupação. Eles estão mapeando toda a experiência. Isso é algo que temos que levar para a saúde, para o paciente.

Como levar isso para a saúde? Afinal, a saúde é um meio um pouco tradicional.

José Marcelo de Oliveira – Sim, e por um lado ele tem que ser. Temos as regras de qualidade e segurança e é melhor você ter protocolos. Mas algumas tradições podem se adaptar, como a vestimenta, as comunicações. Isso que estamos fazendo é mais contemporâneo do que se fôssemos fazer 30 anos atrás.

A saúde tem rompido um pouco essas barreiras?

José Marcelo de Oliveira – Sim. Essa questão da distância, da flexibilidade, isso passa pela relação custo-benefício, conveniência, esforço para acesso. Na pandemia chamou muita atenção a quantidade de consultas remotas e isso era bom, porque o paciente tinha soluções e opções sem ter que se deslocar. Naquele desconhecimento do dado, objetivo e condição da Covid-19, por exemplo, ele tinha medo, por não estar infectado e ir ao hospital, um ambiente de maior risco. Modular essas coisas é muito bom.

Quando falamos de inovação, temos visto iniciativas incríveis. Pensando nesse contexto de paciente no centro e na gestão de um hospital, como a inovação pode de fato gerar valor para o paciente?

José Marcelo de Oliveira – As iniciativas de inovação têm que estar conectadas com a estratégia do negócio. E aí você inverte a lente, porque você vai buscar o seu desenvolvimento para cumprir e atender a sua necessidade e, obviamente, a necessidade do paciente e da solução de saúde que você tem que entregar. Essa mudança de perspectiva facilita encontrar a solução que você quer. Não é ir ao shopping para comprar o que você quer naquele dia. Faz a sua lista e busca, aí você convida as soluções, as startups, os aplicativos, enfim, o que você precisa conhecer para fechar aquele gap específico de inovação. Na agenda do HAOC, nós amadurecemos para isso. Temos um centro de inovação muito ativo, já com uma boa relevância. No ano passado, em um dos rankings de inovação, fomos reconhecidos. É sobre você entender, na sua estratégia, onde buscar a solução e olhar para dentro e para fora. Muita gente está olhando para fora. Mas, por exemplo, um banco cria o um acelerador, porque está buscando distribuir os investimentos e capturar um valor nisso, certo? Mas essa é posição do banco. Eu não sou um banco, eu sou o buscador da solução. Então, eu posso ir nesse acelerador e buscar soluções lá dentro. Ou eu posso fazer a minha própria solução.

Você constrói sobre a sua própria demanda, é isso?

José Marcelo de Oliveira – Sim, isso é o que faz sentido. Senão você vai ficar distraído ou talvez acabe gastando dinheiro em uma coisa que não vai resolver nada.

Esse é um caminho que veio com a maturidade? Em um momento em que temos várias startups, tudo parece muito atrativo. Mas esse olhar mais específico, mais de acordo com a demanda, parece uma coisa mais nova.

José Marcelo de Oliveira – Eu acho que o público geral e às vezes até os jornalistas olham o que chama atenção, mas são agentes que estão de fora do sistema, olhando o que chama atenção e falando sobre isso. Agora, quem está ali dentro que tem recurso escasso, que quer resolver o problema e não quer correr tanto risco, mas quer continuar inovando, naturalmente chega nessa conclusão. Esse amadurecimento é rápido e não tem caminho certo. Eu acho que você pode começar de dentro para fora, pode começar ampliando o ecossistema e depois ir trazendo para dentro porque você está ganhando repertório, conhecimento etc. Indo para o prático, no Oswaldo Cruz, hoje, estamos balanceando muito o que está dentro para determinar as necessidades e buscarmos fora, no ecossistema que já foi desenvolvido.

Poderia dar exemplos práticos?

José Marcelo de Oliveira – Eu posso dar um exemplo que está no meu pulso agora [relógio digital]. Ainda não está em uma escala de solução para o Oswaldo Cruz, mas já vemos a cardiologia usando os dados de biometria de sensores que estão aqui para tomar decisão em cima do paciente daquele caso específico. Eu exploro muito isso nas minhas consultas cardiológicas. Estamos olhando e buscando soluções que melhorem a vida do paciente, antecipem providências médicas e tudo mais. Há alguns anos, no congresso de oncologia americano [ASCO], um dos três melhores trabalhos científicos foi sobre monitoramento remoto de sintomas de pacientes com câncer e melhorou em quase dois anos a sobrevida desses pacientes. Por quê? Porque o monitoramento remoto permitiu o diagnóstico precoce de deterioração da saúde do paciente, então ele não afundou tanto para poder receber etapas de tratamento. Foi esse balanço que que mudou a perspectiva. Você tem esses exemplos práticos, mas ainda é muito difícil saber, dentro desse monitoramento, o que é ruído e o que é relevante. A ciência está se ocupando disso, porque se pegar um paciente ansioso, por exemplo, que a cada 5 minutos liga para o médico, ele vai consumir mais e é um desperdício também.

Mas dá para imaginar um futuro sem pensarmos nos dispositivos vestíveis?

José Marcelo de Oliveira – Eu não tenho certeza disso ainda. Acho que para condições específicas, para mim já está muito claro. Mas ainda não consigo dizer que todos terão um vestível genérico ou amplo. Como seu celular, por exemplo. Se você olhar os meus aplicativos, vão ser diferentes dos seus. É essa adaptação que estamos fazendo e tudo e tem que ter base científica.

Há um ano e meio atrás, você me disse que o fee for service deveria ter um espaço provável de 5% a 10% do total do custo de saúde. No entanto, o pagamento por procedimento ainda é predominante. Por que é tão difícil avançar para outros modelos?

José Marcelo de Oliveira – Os 5% a 10% seriam o estágio maduro. E por que 5% a 10% e não zero? Porque você tem um grupo de doenças que são pouco previsíveis. Para esse grupo de doenças, o sistema não pode trabalhar com parametrizações, cada caso é um caso. Se você pensar em uma pirâmide, seria o topo do custo e esse custo vai estar predominantemente no ambiente hospitalar de alta complexidade e grande porte, que é o caso do Oswaldo Cruz e de outros hospitais mais complexos, mais maduros, com corpo clínico mais referenciado. O fee for service serve para isso. Depois, você tem um grande volume do meio da pirâmide que são doenças muito previsíveis. Por exemplo, o câncer de mama, estádio 1 e 2, que são cânceres iniciais. A maioria das mulheres vai se tratar com uma cirurgia tecnicamente simples, e isso é previsível. Se ela não tiver nenhuma comorbidade, ela vai ficar internada 1, 2 dias, ou talvez possa ser liberada no mesmo dia se ela operar de manhã e estiver bem. Isso vale também para uma cirurgia de vesícula, por exemplo, ou para uma prótese de joelho. Então, esse grande bloco, com o conhecimento acumulado de hoje, dá para dizer qual é a variação, e aí você trata dos modelos mais evoluídos nesse grande bloco. Você também pode colocar nesse bloco as camadas de variações previsíveis. Quer dizer, um joelho de um paciente como eu, 50 e poucos anos, relativa atividade física, vai cair mais dentro do padrão, provavelmente. Mas se eu fosse sedentário, com menos massa muscular, hipertenso, obeso, aumenta a variabilidade, mas ela aumenta em uma parcela previsível também.

Esse deve ser o caminho da evolução dos modelos?

José Marcelo de Oliveira – É nisso que eu acredito. Acho que já passamos do ponto de virada de consciência e o que falta é a fragmentação do sistema, que não permite, muitas vezes, a gente garantir que essa variabilidade seja reduzida ao mínimo possível. O que é uma fragmentação? Eu tenho o cirurgião no hospital, mas o exame está sendo feito em outro lugar. E o exame do outro lugar não segue o protocolo que aquela decisão clínica em cima da cirurgia do joelho, por exemplo, vai precisar fazer. E aí tem uma falta de informação. Ou você vai ter que repetir o exame ou você não vai ter a condição ideal para gerar o desfecho fundamental. Nesse mesmo exemplo da cirurgia do joelho, imagine o seguinte: o hospital te ligando 2 dias antes e falando “para a cirurgia daqui 2 dias, você tem que tomar tal providência”. Se você não tomar essa providência, a sua cirurgia vai ser cancelada. Na véspera, liga de novo e confirma. No dia da cirurgia, você faz o checklist, se está tudo ok, você vai para cirurgia. No pós-operatório, imagine o hospital te ligando e falando “você tem que andar um 1 km. Eu vi no seu relógio, no sensor, que você não andou nada ainda. O que aconteceu?”. Você fala que está com medo de sentir dor e recebe um retorno de “não fique com medo. Se você não andar 1 km hoje, amanhã você não vai andar 2, 3, e o desfecho não vai ser o esperado”.

Assim você divide a responsabilidade com o paciente.

José Marcelo de Oliveira – Exato. Eu engajo o paciente. Por que eu tenho que ter o engajamento do paciente? Para ele fazer a parte dele, porque se ele não fizer, o sistema paga mais caro, ele vai consumir mais e o desfecho dele vai ser mais restrito, ele perde também. Então, todo mundo ganha, mas tem que ter essa consciência e essa coordenação da jornada tem que acontecer. Esse é o bloco do meio. Lá na base da pirâmide, que é a grande população, que também custa, mas é um preço baixo por vida, por mês, são os cuidados de saúde populacional. Nós “pegamos no pé” das pessoas para fazer os exames preventivos, para ter hábitos saudáveis, para fazer os exames periódicos dentro dos protocolos. Hoje o fee for service é o predominante e eu vejo ainda muita dificuldade de movimento. Provavelmente daqui um ano e meio vamos olhar para ele e falar “poxa, nós ainda não caminhamos”.

O Oswaldo Cruz está em qual sentido nesse nível de 5% a 10%?

José Marcelo de Oliveira – Estamos longe, mas como é um centro de grande porte de alta complexidade, ele tende a atrair casos mais complexos e é para isso que ele está lá. Então, se você olhar o recorte por esse viés do Oswaldo Cruz, você vai pegar um viés de casos mais complexos em que fee for service vai ter ainda uma parcela mais relevante. Mas se você pegar dentro de uma população de uma empresa e aí começar a ver qual o percentual na população da empresa, você vai ver que isso vai começar a cair, principalmente naquela empresa que zela pela saúde da população. Posso te dar o exemplo do Oswaldo Cruz. Pense nele como uma empresa que tem colaboradores. Temos 3.500 colaboradores e cuidamos da saúde deles como saúde populacional. Depois do terceiro ano que você traz o conhecimento de saúde populacional para esse universo, você começa a ter retorno do investimento. Não é imediato, mas é óbvio que vai acontecer, então vamos seguir o protocolo. Tendo essa prática, você vê queda de hipertensão, de hipercolesterolemia, menos obesidade nas mulheres gestantes etc. A mulher gestante que não está no pré-natal vai ter provavelmente 10% de chance de ter uma complicação perinatal, que é tudo que a mulher não quer e custa mais. Se você faz o pré-natal, que é cuidar da saúde da gestante, essa taxa cai para 2%. Olha a desproporção. Então, 5% a 10% é nesse viés. Aí você vai ter um monte de mulher tendo parto normal, ficando 1, 2 dias na maternidade, vivendo na primeira semana já com o neném no colo, amamentando e tudo dá certo. É o caminho feliz.

Como resolver a questão da fragmentação? Com a interoperabilidade, a partir do momento que os dados são do paciente, que todo mundo tem acesso, vai ser mais fácil implementar esses protocolos?

José Marcelo de Oliveira – Ajuda muito, porque qualquer etapa do cuidado daquele indivíduo, a quantidade de informações vai estar disponível rapidamente. A interoperabilidade é parte da solução, mas é um desafio. Na teoria é uma coisa, na prática é outra, porque os sistemas não se conversam muitas vezes. Mas temos que continuar buscando isso, porque é a melhor relação custo-benefício. Temos que trabalhar com protocolos válidos cientificamente. Passamos por uma pandemia, então acho que fica fácil entender o quão ruim é você não ter protocolos. No começo da pandemia, infelizmente, ainda não existia e isso foi um estresse muito grande para as equipes médicas. Mas a partir do momento que tem, fica quase que obrigatório usar e o componente da minha opção individual começa também a ficar um pouco restrita, porque estamos falando da saúde de uma população, e não só de um indivíduo. E aí é onde você esbarra em “mas eu quero, tenho direito de escolher”. Você tem, mas então você paga por essa sua opção, o plano de saúde é um protocolo. Parte da dificuldade vem pela imaturidade. O órgão regulador ainda é jovem, ele não tem 20 anos. Estamos em uma cultura latina e somos assim. Então, essas conversas são muito difíceis. Se você se transporta para sistemas mais maduros, como a Inglaterra, Holanda, Portugal, as pessoas falam “sou muito melhor tratado no Brasil”. Qual é essa percepção? É porque aqui somos muito permissivos e tem alguém pagando essa conta e achamos que não somos nós. Eu desejo que nós ganhemos maturidade, porque o custo da medicina aumenta muito rápido. Não podemos consumir medicina como consumimos um outro bem.

E como ficam os hospitais filantrópicos, como é o caso do Oswaldo Cruz, nesse contexto de formação de ecossistemas e de verticalização?

José Marcelo de Oliveira – Essa é a nossa reflexão diária. O sistema está caminhando muito rápido, a pandemia acelerou ainda mais, somada a economia e os investimentos. A saúde tem uma reflexão que é o quanto de verdade isso participa da economia como investimento. Quando você fala de uma instituição filantrópica, ela está buscando muitas coisas de longo prazo. Ela tem que ser sustentável, porque senão as coisas não acontecem. Nós buscamos resultado, mas temos uma camada de investimentos que permite que caminhemos no desenvolvimento da prática em uma escolha de longo prazo, com uma tecnologia que talvez vá fazer diferença um pouco mais na frente, no investimento eventualmente maior na capacitação de colaboradores etc. O Oswaldo Cruz tem 125 anos. Isso conecta com um perfil de corpo clínico que também pensa assim e olha a medicina por essa perspectiva de bem social. E tem uma parte, principalmente no nível máximo da governança dessas instituições, que são doadores. Isso muda também a perspectiva de qual resultado esse doador está buscando, não é a lógica de mercado.

Ao mesmo tempo, de alguma forma, precisa se posicionar dentro dessa transformação que está acontecendo na saúde. As parcerias podem ser um caminho. Pensando nesse contexto de ecossistema, isso está no radar?

José Marcelo de Oliveira – Eu acho que as parcerias são um caminho, porque escala traz benefícios. Nós vemos isso nos grandes grupos, tanto dos diversificados quanto das redes hospitalares. Essas instituições, por mais que cresçam e sejam sólidas, elas não têm o mesmo potencial de captação de recursos e de investimento. A lógica é outra, não é? A colaboração entre as instituições filantrópicas tende a aumentar. Não vai ter uma forma única. É preciso pensar quais são as necessidades, as semelhanças, a convergência de interesses. Eu acho que que isso vai acontecer bastante daqui para frente.

Quais são as perspectivas para 2023 no contexto do Oswaldo Cruz?

José Marcelo de Oliveira – Nós estamos inseridos em um sistema, não somos imunes ao que está acontecendo fora. Uma das coisas que ficou muito claro para mim na pandemia é que a saúde é sistêmica, mesmo no hospital filantrópico. Na região que estamos, não estamos imunes ao que acontece do lado, principalmente no pronto atendimento. Estamos entrando em 2023 com a consciência de que é um ano muito desafiador. Estamos passando por uma transição, acabamos de receber um novo presidente, um novo Ministério, então tudo isso influencia no sistema de saúde. Essa é a camada mais perto de nós. Uma outra camada que influencia muito é a economia. Estamos em um ambiente restritivo. Juros desse tamanho restringem o crescimento econômico e aumentam o desemprego. Isso tudo impacta qualquer prestador de serviço. A nossa perspectiva para 2023 é de muita consciência e muita seletividade para investimentos, para garantir os retornos dos investimentos que estamos tendo. Um outro elemento importante são as operadoras de planos de saúde, porque a pandemia trouxe provavelmente duas coisas que mudaram muito o comportamento. Uma é o represamento de diagnósticos de doenças, pois pacientes se afastaram por 1, 2 anos dos seus cuidados de saúde, só que, infelizmente, as doenças continuaram a progredir. Doenças mais avançadas custam mais e as operadoras estão sobrecarregadas com esse elemento.

 

E a outra?

José Marcelo de Oliveira – É um ponto que surgiu para mim mais recentemente. Provavelmente as pessoas tiveram uma percepção de que é importante cuidar da saúde, o que é bom para um lado, mas aumenta o consumo. O modelo de previsão pode estar um pouco desequilibrado e aí, para o hospital, você presta o serviço e depois que você recebe. Esse desequilíbrio está muito presente em 2023. É assim que eu estou entrando, liderando um hospital que é importante dentro do sistema e observando os demais. Provavelmente todos vão ter que fazer igual, independentemente se falam que estão fazendo ou não. É esse olhar mais cauteloso e equilibrado, ponderando muito risco benefício de qualquer movimento que você faz.

Quais pautas temos que ficar de olho para a saúde ao longo de 2023?

José Marcelo de Oliveira – Tenho um olhar otimista para essa nova onda de liderança da saúde pública. Eu acho que me dá um pouco de otimismo, porque são profissionais com experiência científica, referência científica e experiência em gestão de saúde. Quanto melhor a saúde pública, melhor para todo mundo, porque a saúde é sistêmica. Olhar para a sustentabilidade do sistema por conta da alta sinistralidade dos planos de saúde. Toda vez que esse sistema se desequilibra, ele sobrecarrega o sistema público, então acho que é importante olhar para isso. E para quem tem um olhar mais de investimentos, é importante lembrar que é um setor de risco e que ele depende muito do vigor da economia. Nós não vemos 2023 tendo uma redução de taxa de juros significativa, isso deve acontecer no meio de 2024, então o cenário não muda durante 2023. Do lado social, essa turbulência da transição política também é um ponto que preocupa as pessoas, independente do polo que a pessoa está. Eu acho que essas camadas me trazem muito mais incerteza e isso deve trazer elementos que ainda não conseguimos prever. 

 

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