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O filme que todo mundo deveria assistir no primeiro dia do mês


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Aceitar o outro não como o concebemos, mas da forma que ele é de fato, almejando intimamente que se arrependa de suas faltas e mude, de postura, de comportamento, mude sua forma de ver a vida, mude de vida, enfim, enquanto nos policiamos a fim de não nos tornarmos ranzinzas, preconceituosos, intolerantes, é uma tarefa inglória, mas que pode ser também muito reconfortante. Compreender as outras pessoas, dar-lhes uma palavra de incentivo, um sorriso franco, desarmado, sem receio de ser tachado de doido, destinar-lhes um olhar de bondade que seja, muitas vezes exige de nós tamanho sacrifício que é como se fizéssemos mesmo uma longa viagem para aquela vida, em que, as circunstâncias que consideramos as mais absurdas são o que pode haver de mais corriqueiro. Daí ser tão complexa a vida do ser humano, sempre envolta em centenas de questões, milhares de problemas, dos quais só somos capazes de nos livrarmos na medida em que acessamos o mais obscuro do espírito, primeiro o nosso, para a partir dessa experiência termos consciência uns dos outros. O homem está sempre precisando de alguém que o salve, eis a sua desgraça — e a sua redenção.

P U B L I C I D A D E

Com uma leveza quase inconsequente, “Ontem, Hoje e Amanhã” (1963), que pode ser visto gratuitamente na NetMovies, faz questão de botar o dedo em algumas feridas ainda abertas da humanidade. Em três histórias de duração equivalente, Vittorio De Sica (1901-1974) apresenta situações com uma característica em comum, o encantamento, o poder, o domínio que as mulheres exercem sobre os homens, definindo sua posição na sociedade, a forma como são vistos e se podem ou não contar com o apoio de seu grupo social nos momentos em que cometem um deslize qualquer. Protagonizados por Sophia Loren e Marcello Mastroianni (1924-1996), os três segmentos do longa discorrem sobre um assunto, e, ao cabo, quando se amarra tudo, verifica-se que as três histórias remetem a variações de um mesmo tema. Em “Adelina”, a primeira parte, De Sica tece suas considerações acerca do ordenamento jurídico italiano de então, que endossava verdadeiros disparates. Adelina Sbaratti — um trocadilho que revela a personalidade atrevida da personagem — contrabandeia cigarros para sustentar a família, uma vez que o marido, Carmine, está desempregado há muito tempo. Adelina é uma criminosa, por óbvio, mas quando descobre que uma brecha na lei proíbe que grávidas sejam presas, distinção que se estende até seis meses depois do parto, a personagem, uma sobrevivente da fome, da desesperança, do descaso das autoridades, passa a se valer das próprias autoridades a fim de perpetuar seus trambiques. Tudo o que precisa é manter Carmine sempre disposto, para que nunca passem uma noite sem fazer sexo e, por conseguinte, ela não pare de engravidar. Como a vida não pode ser um mar de rosas, justamente esse se torna o conflito do enredo.

Já sem conseguir honrar seu papel de marido — que no seu caso excede a mera saciedade do desejo sexual —, Carmine não dá sua colaboração quanto a manter as perenes gravidezes de Adelina, uma função que Pasquale, o onipresente amigo da família vivido por Aldo Giuffrè (1924-2010) quase chega a desempenhar, por um apelo desespero da personagem de Loren, que se arrepende de imediato. Como se poderia prever, Adelina termina indo presa, sem poder se socorrer do fato de esperar um filho dessa vez.

É clara em “Adelina” a alusão ao senso de comunidade do italiano, em especial nos estratos menos privilegiados da população. No intuito de abreviar os dias da contrabandista no cárcere, os vizinhos promovem uma campanha, em que uma parte de tudo quanto os comerciantes locais arrecadam vai para o pagamento da fiança de Adelina. A aderência da própria polícia à iniciativa tem dois vieses interessantes; se por um lado, policiais tomarem parte da empreitada é decerto uma afronta, por outro o inusitado dessa realidade se refere diretamente à arbitrariedade da detenção da mulher. Apesar de na aldeia serem todos paupérrimos, em seus apartamentos de um único cômodo, ainda mais exíguos dado o número excessivo de crianças em todas as famílias. Essa apresentação de “Ontem, Hoje e Amanhã” serve para situar o público na atmosfera da Itália dos anos 1960, repleta de seus tantos abismos sociais.

A partir da segunda seção, “Anna”, De Sica mergulha mais fundo na natureza íntima de seus personagens, ainda que sempre reste um bom espaço para a análise sociológica. Aqui, Loren concebe a personagem-título como uma mulher requintada, muito rica graças ao casamento com um megaempresário, indo ao encontro do namorado, o escritor Renzo, de Mastroianni, num Rolls Royce novo em folha. Não se consegue saber se por falta de traquejo ao volante ou se por causa de uma espécie de cacoete nervoso, Anna sempre dá uma batidinha de leve no para-choque do carro da frente sempre que freia. Entre um e outro chamego, Anna e Renzo trocam de lugar — numa cena de teor sensual tão despretensioso (talvez uma brincadeira de Loren, Mastroianni e De Sica decidida no calor na hora) que a faz uma das mais excitantes da história do cinema — e o escritor assume a direção. A fim de evitar o atropelamento do garoto que sinaliza obras na pista, Renzo faz uma manobra brusca, o carro sai da estrada, bate e fica com o chassi completamente amassado. Se até cinco minutos antes Anna amava à loucura aquele homem, capaz de tirá-la do tédio do casamento arranjado, passara a odiá-lo, porque dera-lhe tamanho prejuízo. Uma sátira de De Sica, à moda felliniana, à instabilidade do coração feminino, agravada pela sobrevalorização que certas mulheres nutrem por glamour e prestígio, encarnados, claro, por bens materiais — e passageiros. Sem dúvida, o melhor tomo do longa, ainda que “Mara” divida opiniões.

“Mara”, a terceira parte do filme, conta a história da meretriz romana que passa a habitar os sonhos de Umberto, interpretado por Gianni Ridolfi, o vizinho que estuda para ser padre. A relação dos dois nunca se consuma, apesar do evidente desejo que nasce entre eles, o que acaba sendo o mais conveniente para todos, para Umberto e Mara, que no fundo sabem que este é um caso impossível, e para Augusto, vivido por um Mastroianni ainda mais sedutor que em “Anna”, e a avó do rapaz, personagem de Tina Pica (1884-1968). Algo moralista, ao mesmo tempo que extremamente mordaz — conforme se depreende da postura sempre altiva da prostituta de Loren —, “Mara” destaca a eterna dicotomia que constituem desejo e culpa, aqui representada pela formação católica de Umberto. Mara, por seu turno, tem uma consciência até insultuosa de sua função no ambiente em que está inserida, outra das ferroadas do diretor.

Misturando humor com uma abordagem seriíssima sobre questões que ainda suscitam toda sorte de prurido moral, “Ontem, Hoje e Amanhã” se presta a um retrato atual da sociedade — hipócrita, egoísta, mas muitas vezes também solidária e corajosa — a qualquer tempo. Uma peça que permanece, com toda a justiça, no inconsciente coletivo quando se evoca a ideia de cinema engajado.

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