Pesquisadoras demonstram que compostos do lúpulo, tradicional ingrediente da cerveja, inibem a replicação dos vírus chikungunya e oropouche em testes laboratoriais
São Paulo, setembro de 2025 — O lúpulo (Humulus lupulus) é conhecido mundialmente por dar aroma, amargor e propriedades conservantes à cerveja. Mas agora, esse mesmo ingrediente revelou um potencial surpreendente: o de arma contra vírus tropicais que afetam milhões de pessoas nas Américas. Essa descoberta é fruto da colaboração entre a cientista brasileira Marielena Vogel Saivish, atualmente research fellow na University of Texas Medical Branch (UTMB, EUA), e a pesquisadora Tsvetelina Mandova, da Gilson Purification (França), especialista em química de produtos naturais.
Primeiros achados: lúpulo contra chikungunya
No artigo “Identification of Potential Antiviral Hops Compounds against Chikungunya Virus” (International Journal of Molecular Sciences, 2023), Mandova e Saivish demonstraram que compostos bioativos do lúpulo, especialmente xanthohumol e acilfloroglucinóis, apresentaram capacidade de reduzir significativamente a replicação do vírus chikungunya (CHIKV) em células infectadas. O chikungunya, transmitido pelo mosquito Aedes aegypti, causa febre alta, dores musculares e articulares incapacitantes que podem durar meses. Não há antivirais específicos ou vacinas amplamente disponíveis.
“O fato de um ingrediente tão comum da cerveja mostrar atividade contra um vírus tão grave foi algo extremamente empolgante”, explica Saivish.
Expansão para o vírus oropouche
A colaboração continuou e, no mesmo ano, foi publicado o artigo “Antiviral Activity and Molecular Dynamics Simulation of Hops Compounds against Oropouche Virus” (Pharmaceutics, 2023). Dessa vez, as pesquisadoras miraram o vírus oropouche (OROV), um arbovírus da Amazônia que já infectou mais de meio milhão de pessoas no Brasil e em outros países da América do Sul, causando febre parecida com dengue e, em casos graves, meningite e encefalite. Nos experimentos, compostos do lúpulo foram capazes de reduzir em até 6 logs a produção viral em células infectadas, um resultado considerado muito promissor. Além disso, análises de modelagem molecular (in silico) revelaram que moléculas como xanthohumol, cohumulona e colupulona se ligam fortemente à enzima endonuclease do OROV, bloqueando etapas essenciais da replicação viral. “Mostramos que compostos simples, derivados de uma planta amplamente cultivada, podem agir sobre diferentes vírus tropicais. Isso abre um novo caminho para os antivirais naturais”, destaca Saivish.
Impacto internacional
A publicação em revistas como o International Journal of Molecular Sciences (IJMS) e Pharmaceutics, ambas de alto impacto e ampla circulação, garante visibilidade global para a descoberta. Esses periódicos são referência entre químicos farmacêuticos, virologistas e profissionais de saúde pública, reforçando o peso científico da colaboração.
“É muito gratificante ver que um estudo baseado em ciência básica e produtos naturais chama atenção em revistas internacionais de alto nível. Isso mostra que a pesquisa tem relevância não apenas local, mas mundial”, afirma Saivish.
Uma parceria Brasil-França de impacto
Essa colaboração mostra a força da ciência internacional: de um lado, Mandova trouxe a expertise em purificação e caracterização química de compostos naturais do lúpulo; de outro, Saivish trouxe a experiência em virologia e testes antivirais em arbovírus tropicais.
“Essa é a beleza da ciência colaborativa: quando diferentes áreas se unem, podemos transformar algo tão comum quanto o lúpulo em um candidato promissor para combater doenças emergentes”, comenta Saivish.
Próximos passos: da bancada ao futuro clínico
Atualmente, como research fellow na UTMB, Saivish segue investigando antivirais naturais e sintéticos contra arboviroses negligenciadas, sob a orientação de Nikos Vasilakis e Shannan Rossi, em colaboração com o virologista brasileiro Maurício Lacerda Nogueira. O foco é avançar em estudos pré-clínicos, identificar novos mecanismos de ação e preparar o caminho para transformar compostos naturais em futuros tratamentos.
Financiamento e apoio estratégico
As pesquisas foram apoiadas pela FAPESP, pelo CNPq e pelo National Institutes of Health (NIH/EUA), dentro do programa Centers for Research in Emerging Infectious Diseases (CREID). O financiamento internacional reflete a confiança no impacto desses achados e sua relevância para a saúde pública global.
A ideia de que o mesmo ingrediente que dá sabor à cerveja pode ajudar a combater vírus como chikungunya e oropouche é, ao mesmo tempo, curiosa e transformadora. “Estamos acostumados a olhar para a natureza em busca de medicamentos. O lúpulo mostra que soluções inovadoras podem estar onde menos esperamos. Nosso desafio agora é transformar esse potencial em antivirais reais para as populações afetadas”, conclui Saivish.
*Marielena Vogel Saivish é biomédica com diversas especializações lato sensu concluídas, incluindo Epidemiologia e Vigilância em Saúde, Saúde Pública e Vigilância Sanitária, Imunologia e Microbiologia, Biossegurança e doenças infecciosas, além de outras áreas correlatas. É mestre em Ciências Aplicadas à Saúde pela Universidade Federal de Goiás (UFG) e doutoranda em Ciências da Saúde na Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto (FAMERP-SP), com bolsa FAPESP. Atuou como Visiting Scientist na University of Texas Medical Branch (UTMB), nos Estados Unidos, onde atualmente é research fellow e lidera pesquisas em virologia. Especialista em arboviroses emergentes e negligenciadas — como dengue, zika, chikungunya, mayaro, oropouche e, especialmente, o vírus Rocio — é autora de mais de 30 artigos científicos de destaque internacional, incluindo publicações na Emerging Infectious Diseases (CDC/EUA) e na Viruses. Suas investigações buscam desenvolver modelos animais inéditos, antivirais promissores e testes diagnósticos rápidos, essenciais para o enfrentamento de ameaças virais negligenciadas.
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